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Contos

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                         Altos e Baixos

                         (Primeiro conto do livro Barafunda)

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                         Não adianta contar porque são muitos. Muitos são os que passam sob os nossos pés e muitos os que passam por cima de nossas cabeças. Cada qual com sua imponência própria, sua história, sua grandiosidade expressa numa placa de inauguração que resiste ao vento, à chuva e ao sol. Todos passam com igual velocidade... e... aliás, não são eles que passam mas nós que realmente passamos e vamos em nosso rumo e em nossa rota por entre suas sombras! Eles permanecem nos seus lugares de modo inflexível, numa lealdade imperturbável e numa posição que sempre impõe respeito. Não sei por que, mas fico sempre perturbado diante de suas silhuetas e o que eles impõem em mim é, na verdade, um medo danado. Bom, só sei que vamos passando e eles vão ficando, distanciando-se numa pura ilusão de ótica que nos faz pensar que eles realmente se distanciam, que diminuem seu tamanho aos poucos até sumirem no horizonte. Somos nós que sumimos num horizonte perdido e nem deixamos lembranças de nossas passagens. Pode parecer estranho, mas sou um trabalhador que pensa, que vai e volta do trabalho pensando a vida. E quem pensa a vida não tem como ficar indiferente a tudo isso.

- Com licença! Licença!

- Oh, moço, desculpa! Pode passar.

Dos tantos que atravessei (disse que não adiantava contar, mas creio que foram cento vinte e dois ao total), nenhum deles chamou a atenção dos tran- seuntes, não chamou a atenção dos pássaros, das plantas, de uma pipa solitária (sim, uma pipa!) que vagava por cima em busca de claridade e nem, tampouco, dos cachorros vagabundos. Todos evitam sua pesada e rancorosa forma esquelética. Sua presença definitivamente não desperta o menor interesse.

Passamos muitos e nenhum membro desta tribo imensa lotada neste ônibus dá a menor atenção ou a mínima olhada para observá-los lá fora. Só eu mirei lá embaixo sua estrutura rígida e o desperdício do concreto. Só eu mirei lá encima suas figuras rasgando o céu. Talvez meus olhos estivessem buscando algo mais significativo, algo mais nobre e mais humano que essa massa disforme e lânguida ao qual estou preso nesta jornada insólita do trabalho à casa, do trabalho à vida... Estou mesmo preso a eles numa infindável cumplicidade. O que posso fazer? Meus olhos talvez estivessem fugindo de tantos olhares que me fitam e me interrogam no silêncio da viagem. Não sei de que fogem meus olhos, mas sei que procuram desesperadamente alguma coisa que possa en- chê-los. Não disse? Sou um trabalhador que pensa, que reflete e busca sentido nas coisas. Estranho, né?

- O que o senhor disse?

- Ah…? Não, não nada! Só pensando em voz alta.

- Xiiii!…

Na falta de poesia desse mundo besta, lembro o poeta que fitava as ca- sas, as janelas de um povoado e também as pernas que passavam. Para que tantas pernas? Êta cidade besta! Para que tantos olhares? Êta vida besta! É... eu lembro bem o dia em que a professora da sétima série nos fez ler esse poema. Depois de tantos anos, neste sombrio meio de transporte, olho e penso: para que tantas rugas, tantas caras sérias, tantos dissabores, tantos odores? Tudo isso sou eu que interrogo, não eles que continuam onde foram colocados e sustentam a rigidez do ferro nas curvaturas desenhadas pelos que os criaram. Não é incrível? Foram criados pela incomensurável capacidade intelectual e criatividade do homem. Criados para o benefício da humanidade e concebidos para o conforto da espécie. Conforto!

- Conforto? Você chama esse aperto terrível de conforto?

- Não! Não! Só pensei em voz alta de novo. Estava pensando no conforto que o homem pode ter lá em cima.

- Tu é pastor, obreiro ou o quê? Já vai começar com a pregação? É melhor não, porque o povo aqui já está de saco cheio disso.

- Não falo do conforto metafísico que a alma possa receber numa dimensão celeste, falo do bem-estar material das classes que ascendem ao poder econômico e...

- Iiiih... o cara pirou de vez. Ou fumou um baseaaaado... eu, hein!

O confuso interlocutor vira as costas, dando de ombros, e vejo mesmo que todos ignoram a existência de tamanhas criaturas a engolir homens, mulheres e crianças. Ao vê-los nada dizem e evitam, inconscientemente, olhar de forma fixa ou demorada para essas figuras. Olham vagamente para si mesmos e nada mais.

Mais um e mais outro passam por cima. Nada vi a não ser sombras. E a sombra não tem cor, nem cheiro, nem brilho... ela não tem nada. É sombra, que fisicamente pode ser descrita como ausência (parcial ou total) da luz. Muitos, aqui mesmo neste ônibus, devem ter estudado isso e talvez até saberiam definir o que é a luz. Mas saberiam mesmo dizer o que é de fato a luz, ou a falta dela? Tenho minhas dúvidas...

Agora nosso ônibus passa ao lado de outro e nos dá a ligeira impressão de estarmos num plano mais elevado, numa posição privilegiada, acima de muitos que se encontram lá embaixo. O que diria Kafka diante deles? O que diria o autor tcheco ao descer sobre este viaduto, parar ao parapeito de ferro enferrujado e fitar o horizonte cinza dessas figuras insólitas? Com certeza que não seria enganado pelas modernas linhas, pela bela pintura de alguns e pelo brilho das vidraças. Assim como ele, eu também sei que toda essa beleza encobre um processo de emanharamento da liberdade. E eu não me engano também com a argamassa distribuída uniformemente numa base tão sólida capaz de suportar toneladas sem o menor impacto. Eles nos engolem a cada dia, mesmo passando por baixo, ao lado e até por cima deles, fazendo com que todos se pareçam com eles na forma, na cor, no jeito, na estrutura e até no cheiro. Metamorfose estranha...

Os ônibus, os carros e os trens tiveram uma longa aprendizagem com eles de tanto passarem perto, por cima, por baixo... e agora também engolem homens, engolem mulheres e mastigam crianças. Fazem parte do mesmo esquema, ou do mesmo processo, diria nosso escritor tcheco. As bicicletas ainda resistem... não sei até quando, pois, as motocicletas não resistiram e, aliás, nem tiveram problemas de adaptação... encaixaram-se perfeitamente nas vias e nos becos dessa selva de concreto e vão e vem em plena harmonia.

Parada vinte e dois. Homens sãos cuspidos, homens são engolidos (tanto o sapiens, como o oeconomicus, o homo loquax, e, repito, mulheres e crian- ças). São todos engolidos e cuspidos numa interminável rotina permeada por este roteiro que passa por cima e por baixo de tanto concreto. Sou obrigado a seguir viagem...

Vejo figuras confusas lá embaixo e meus olhos não conseguem decifrar muita coisa. São sombras que fogem das sombras (as menores das maiores, evidentemente!) e pouca vida se manifesta nessa penumbra. Se alguém pudesse ler meus pensamentos aqui neste ônibus talvez poderíamos estabelecer um diálogo sobre eles e ver até que ponto fomos ou não fomos engolidos. Eu só não poderia era revelar meus temores mais íntimos, para essa pessoa. Senão, meu novo amigo ou amiga me levaria para o sanatório.

Já me vejo diante de um psicólogo ou de um psiquiatra:

- O que você anda vendo?

- Vejo sombras!

- Hum...! e por que não vê luz?

Eu sabia que ele ia perguntar isso...

- Bem, não é que não as vejo. Mas as sombras são mais significativas. E antes que você me pergunte, não são mais significativas para mim. Entende o que quero dizer? Não são mais significativas só para mim. Elas estão lá embaixo em todos os lugares... Nas curvas, nas folhas, nas águas, nos buracos... e... e... e principalmente... neles!

- Neles? Neles quem?

- Ora, neles!

- Hum!.....

Parada trinta! A grande massa já se encontra agora mais rarefeita. O vai-e-vem já diminuiu bastante e então posso contar as cabeças (que mania terrível de contar tudo que vejo!). Conto as pernas, conto os braços, os livros, as ferramentas, as bolsas, os aparelhos; conto as curvas, os postes de luz e, bem do alto, conto as janelas. Lembro de novo do poema das pernas...

Há muito tempo que presto atenção na silhueta desses monstros. Eles carregam um enigma indecifrável em toda sua conjuntura. São blocos e mais blocos de concreto armado levantados por uma multidão anônima e que, ao longo do tempo, vão ganhando vida. Na verdade, não sei se roubam vidas, se simplesmente guardam vidas ou se tornaram vivos realmente por si mesmos e que, agora, impávidos, observam-nos de suas alturas. Ei-los a passar (mais uma vez, não são eles que passam, mas nós que passamos!). Ei-los robustos, grandiosos, ornados, limpos, imponentes como as colunas mestras de um templo pagão.

Passa um... passam dois... passam três... um bloco deles, um bairro...toda uma paisagem cheia deles com seus milhares de olhos (uns escuros, outros reluzentes) a nos observar  o que estarão pensando neste momento? O que sussurram uns aos outros com seus olhos de soslaio a mirar-nos que passamos aqui embaixo e sumimos no horizonte? Por que se preocupam tanto com tantos braços, pernas e cabeças comprimidas aqui embaixo? Ou serei eu que estou me preocupando demasiadamente com eles? É... talvez eles nem saibam de meus pensamentos, de minhas preocupações e não conheçam nenhum poema. Talvez nem estarão nos olhando, mas contemplando a beleza do pôr do sol, das nuvens e das pequenas estrelas que despontam no firmamento, acima do que podemos contemplar. Talvez estarão saboreando a doçura do vento, da brisa noturna... Talvez sempre contemplaram o horizonte distante e nem saibam que existimos e que passamos. Sua imponência parece desconhecer nossa ignóbil presença.

Baixo a cabeça porque o pescoço começa a doer e vejo uma senhora idosa, sentadinha a fitar-me. Suas cãs e suas rugas não conseguem esconder um brilho inconfundível de alguém que possui muita vida, firmeza e vontade. Digo-lhe, telepaticamente, que o talvez não existe, mas é o fruto de uma divagação passageira, de um pensamento inconstante e incerto. Ela nada responde. Apenas sorri num sorriso tão giocondesco que lá de cima ninguém pôde perceber. Eles não percebem mesmo muita coisa...

Continuo minha experiência telepática explicando-lhe que mesmo sendo uma divagação, o talvez rompe o limite do possível e cria situações inusitadas, cria mundos diferentes e realidades paradoxais. Só não consigo entender por que o talvez raramente sobe o elevador.

- A senhora saberia me dizer?

– (...)

- Dizer o quê? O que são eles?

Ai, ai, a velhinha sumiu e estou de volta à consulta psicológica... a psicóloga tomando nota de tudo que eu falo. Psicóloga ou psicólogo? Acho que falei antes psicólogo... mas não importa, mulher ou homem, são sempre os mesmos, sentados, tomando nota friamente como essas figuras de concreto.

- Então, não consegue ver luz nenhuma? Nem um pequeno facho de luz? Definitivamente ele (ou ela) não sabe do que estou falando.

- Bom, vejo as luzes que se acendem e se apagam lá no alto. Todas as vezes que venho do trabalho, gosto de observá-las porque elas nos espreitam. São muito numerosas. Mesmo sabendo que não adianta nada, um dia resolvi contá-las. Ou melhor, multiplicá-las. Tantos focos, tantas aberturas que se perdem numa dízima... Cheguei a uma soma de dezenas de milhares apagadas e alguns milhares acesas. Mas são algumas poucas centenas que brilham. A maioria delas são luzes opacas, não possuem nenhum facho de luz, são frias e escuras como aqui embaixo e mais lá embaixo.

- Lá embaixo onde ficam “eles”?

- Sim!... Exatamente onde eles começam!

- Continue falando das luzes, por favor...

Já não há mais luzes. Parada quarenta e sete. Fim da linha. Última estação.

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